30 julho 2005

Encontro de sons

No botequim, três sambistas velhos conversando. Vinícius é o primeiro a falar:

- Fazer samba não é fazer piada.
Quem faz samba assim não é de nada,
O bom samba é uma forma de oração.

Noel responde:

- E quem suportar uma paixão
Saberá que o samba então
Nasce do coração...

Ao que Tom completa:

- ... E no peito dos desafinados
No fundo de peito bate calado
No peito dos desafinados também bate um coração.

Um estudante de Lógica, que bebia na mesa ao lado, tirou as seguintes conclusões:

1. Se:
a) O samba (que é uma forma de oração) vem do coração
b) Os desafinados também tem um coração
Logo:
Os desafinados também podem fazer samba.

2. Se:
Eu sou desafinado.
Logo:
Eu também posso fazer samba.

E saiu correndo do bar em busca de um violão, já com um samba-oração na cabeça:


Eu vou sair
Porque de repente a morena tá lá
E quando a vir
Meu coração vai batucar mais forte
E eu quero ouvir

Eu quero ouvir seu canto
A voz da mulher traz além da palavra
O encanto
Do encontro de sons que a fonte do amor
Faz existir.

Pensamento

As verdades da vida têm mais graça
quando ditas em forma de canção.

23 julho 2005

Letras

Em uma entrevista para a TV, perguntaram pro Ariano Suassuna (O Auto da Compadecida) se era melhor escrever textos para teatro, roteiros de cinema ou livros. Ele respondeu que, para montar uma peça, precisa de atores, figurinos, cenários, ensaios; para fazer um filme, de pelo menos um milhão de reais. Agora, com uma caneta e uma resma de papel já dá pra escrever um livro.
Com música, é mais ou menos a mesma coisa. Uma canção nasce naturalmente, pela letra ou pela melodia. Mas depois tem que ir pro violão, pesquisar a harmonia, achar o tom, definir o ritmo, criar o arranjo, ensaiar, cuidar da voz, lixar as unhas, afinar o violão, pagar estúdio, gravar, mixar, editar...
Talvez seja por isso que guardo letras que até hoje não viraram música. Essa foi escrita em 1994, e nem nome tem:

Desde pequenina
Brilho natural
Bem de manhãzinha
Rindo no quintal

Quentura na pele
Tomada de sol
O amor que floresce
Um carinho afinal

Depois, mais esperta
Em casa sossega
A vaidade se aperta
Que a cria já vem

Frutinhos descalços
Do ventre de alguém
Se crescem, dispersam
Saudades também

Radicalismos

Já começo a ouvir nas ruas gente falando do tal plebiscito sobre o porte de arma. A maioria parece defender a legalidade do porte de arma, sob o argumento de que o povo precisa estar armado para se defender dos bandidos.
Podem até ter razão, mas não suporto ouvir essas coisas. Sou um pacifista radical, e um radical não ouve argumentos. Um radical se apega à sua crença como se ela fosse a única. E eu creio radicalmente na paz e no amor. O resto não me interessa.
Armas para mim não deveriam nem existir, muito menos estar nas casas das pessoas. Vou votar para proibirem o porte e a venda e, quem sabe, um dia ainda possa votar para destruí-las de vez.
Não, não quero pensar na falta de segurança nem refletir sobre a questão da criminalidade. Me deixem em paz com a minha crença e com meu radicalismo pacifista e tolo. Vocês que são espertos, que encham suas casas de armas e se fuzilem uns aos outros, se é o que querem. Mas me poupem de ouvir seus discursos raivosos.

Maria tem 5 anos

- Pai!
- O quê, filha?
- Lembra quando eu falei que, quando crescer, queria ser bailarina, ou veterinária?
- Sim, filha.
- Acho que eu não quero mais.
- Por quê, filha?
- Porque agora eu quero ser uma dessas moças que varrem a rua.
- Hhhnhmhmh? (ruído de pai saindo do conversador automático) Como é que é?
- É. Eu queria ser uma dessas moças que varrem a rua e deixam a cidade limpa.
- Mas por quê logo isso?
- Porque eu acho bonito. As pessoas são burras, sujam toda a cidade em que elas moram. Deixam cachorro fazer caca no chão, jogam papel, não respeitam nada. Aí vêm essas mulheres e varrem tudo, deixam a rua limpinha. Eu acho que elas fazem isso porque amam a natureza, não é? Então: eu também amo a natureza, quero ser como elas e ficar varrendo a rua que as pessoas sujam. Você não acha que é um trabalho bonito?

17 julho 2005

Via Anchieta

Na Via Anchieta
Havia tanta coisa
Gato, passarinho
Tamanduá, pavoa...

Na pista de cimento
Viajam as pessoas
São tantos os motivos
Pra tanta pressa à toa

Havia um Anchieta
Padre de Lisboa
Aqui nestes caminhos
Refez suas escolhas

Na Via Anchieta
Relaxo na poltrona
Componho em brincadeira
O tempo quase voa

Trilha sonora da semana

Moro em Santos, trabalho em São Paulo. Ônibus fretado. Duas horas pra ir, duas pra voltar.
De manhã, vou dormindo. À tarde, vinha lendo, mas no inverno escurece cedo, e a vista já cansada pediu um tempo. Então passei a ouvir CDs.
Na segunda, fui de Roda de Samba. É dos anos 60, e tem Paulinho da Viola (bem jovem), Elton Medeiros (mais ou menos), Zé Keti e Nelson Sargento (já veteranos) tocando juntos. É bom: samba da antiga, com letras simples mas belas (Quero um amor perfeito/pra aliviar meu peito/ que por ti já padeceu demais). Nada a ver com o que chamam hoje de pagode.
Terça-feira foi o clássico Elis & Tom , que tem o famoso dueto em Águas de Março. É de 1974. O repertório é basicamente de bossa nova, mas os arranjos têm guitarra e piano elétrico, um lance meio jazz. Elis puxou pro lado dela, escolhendo canções em que pudesse explorar aquele modo teatral de interpretar, que nem todo mundo gosta; acerta em cheio nas letras mais dramáticas (Retrato em Branco e Preto), mas derrapa em Corcovado, que é leve demais pra cantar daquele jeito. A melhor do disco, pra mim, é Chovendo na Roseira.
Na quarta foi London Sessions, do blueseiro Howling Wolf acompanhado pelo Eric Clapton e o baixista e o baterista dos Rolling Stones. Os (então) jovens e (já) ricos roqueiros se contentam em ser só banda de apoio para o velho (que além de tocar gaita tem a melhor voz rouca que já ouvi cantando blues). Interessante: descendentes dos colonizadores cultuando a música de um neto de escravos... Daria uma boa tese, para um historiador.
Quinta-feira ouvi Na Pancada do Ganzá, do Antonio Nóbrega, um cantor e ator pernambucano que é uma espécie de discípulo do Ariano Suassuna (Auto da Compadecida). Ele resgata o folclore nordestino, recriando velhas cantigas de domínio público da região. Mas os músicos são de primeira, e tem até uma versão em ritmo de frevo (ou algo assim) para uma peça de Bach.
Termino a semana com o Refazenda, um de meus discos preferidos do Gilberto Gil. É de 1973, acho, e o nome de algumas músicas já mostra o conceito (sim, é do tempo em que os discos tinham um "conceito") do disco: Meditação, Retiros Espirituais...

13 julho 2005

Precisamos de música

Às vezes me perguntam se há algo novo no rock ou na MPB. Respondo assim: não há, nem há de haver. Rock e MPB foram fenômenos musicais que surgiram porque, cada qual a seu modo, eram necessários naquele momento.
É que a música (e a arte em geral) não surge do nada; ela vem em resposta a uma necessidade humana. Cada tempo, cada lugar, tem a música que merece e precisa. O rock surgiu, libertário e enérgico, porque o seu mundo (EUA, anos 50) estava muito careta, moralista, conformado. Da mesma forma a MPB, nacionalista e contestadora, apareceu em um Brasil como o de 1965, militarista e colonizado.
Hoje ambos, rock e MPB, já cumpriram seu papel. Por isso, tudo o que surge agora nesses dois estilos soa meio usado, repetitivo, parecendo sempre com qualquer coisa que já tenha sido feita antes de 1975.
Se é assim, então de que música precisamos agora? Tenho lá meus palpites:

O mundo está muito violento. Precisamos de uma música tranqüila.
O mundo está muito estressado. Precisamos de uma música relaxante.
O mundo está muito egoísta. Precisamos de uma música solidária.
O mundo está muito narcisista. Precisamos de uma música humilde.
O mundo está muito barulhento. Precisamos de uma música suave.
O mundo está muito ignorante. Precisamos de uma música delicada.
O mundo está muito dividido. Precisamos de uma música que nos una.
O mundo está muito descrente. Precisamos de uma música devota (mas não crente).
O mundo está muito fanático. Precisamos de uma música equilibrada.
O mundo está muito triste. Precisamos de uma música feliz (e não alegre).
O mundo está muito mentiroso. Precisamos de uma música verdadeira.
O mundo está muito complicado. Precisamos de uma música simples.

10 julho 2005

Livros e Jovens

Leio no “Folhateen” um leitor afirmar que os jovens não se interessam por livros de autores como Machado de Assis e outros porque sua linguagem é “antiga” ou “difícil”.
Se formos seguir esse raciocínio, toda a literatura do mundo está condenada. A língua é viva, evolui com o tempo. Mesmo autores “atuais”, como o Veríssimo ou Rubem Fonseca, daqui a 50 anos vão soar “velhos” para nossos filhos ou netos. Irão perder o valor por causa disso?
A mágica da leitura é justamente sua capacidade de nos transportar para longe, no tempo e no espaço. Quando lemos um livro antigo, só precisamos nos deixar levar para a época e o ambiente em que foi escrito. Se for literatura da boa, os temas, conflitos e personagens vão permanecer atuais e capazes de nos acrescentar alguma coisa. Pode apostar.

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Agora, o que talvez afaste os jovens da leitura seja a própria escola, que comete erros como mandar a meninada adolescente ler (e entender!) o “Grande Sertão: Veredas”. Cada livro tem o tempo e a idade certa para ser lido. Forçar uma leitura dessas só vai ajudar o moleque a nunca mais querer ver um livro clássico pela frente.
Quando eu estava no primário, 1978 mais ou menos, existia uma coleção chamada “Para Gostar de Ler”. Eram coletâneas de pouco mais de 100 páginas, com contos e crônicas de Fernando Sabino, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade. Nenhum conto tinha mais de três páginas, e alguns deles traziam ilustrações. Será que não fazem mais coisas assim?
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Falando nisso, saiu na “Gazeta Mercantil”: o faturamento da indústria e comércio de livros, no Brasil, praticamente dobrou entre 1994 e 2003. O número de livros vendidos nas livrarias, no entanto, variou muito pouco. Como pode? A matéria, de página inteira, não explicava. Mas tenho um palpite: é porque os livros estão cada vez mais caros. Não se vê nenhum bom lançamento por menos de R$ 40,00! Em vez de investir na formação de leitores, as editoras preferem arrancar mais dinheiro dos poucos que lêem, fazendo edições cada vez mais luxuosas e caras.

02 julho 2005

Vou falar de política, só um pouco

Não dá pra ficar alheio às notícias das últimas semanas. Alguns pensamentos que me ocorrem sobre o tema:

O mais triste não é ver aquilo em que acreditamos por mais de 20 anos cair por terra. Nem perceber que, de uma hora para outra, viramos órfãos políticos (votar em quem agora? Na Heloísa Helena?). Ruim mesmo é ter que agüentar o pessoal de direita falando: “Viu? Eu não disse?”.

OK, o PT no governo está se mostrando igual ou pior que seus antecessores, e tem gente por lá que merece ir pra cadeia e tudo o mais. Mas cuidado: já há quem esteja vendo esse Jefferson como se fosse um herói, o homem corajoso que teve a coragem de denunciar a corrupção... Peraí! O cara é bandido da pior espécie, só está delatando (ou caluniando, sei lá, vamos aguardar...) os outros para tentar salvar o dele. Não vamos perder o foco!

Sei que não adianta, mas como eleitor me sinto no direito de dar um recado ao Lula. Pra terminar o governo com um mínimo de moral (caso seja de fato inocente, como ainda creio), ele só tem um caminho: esquecer essa história de acordo com o PMDB; fazer uma limpa geral no Ministério e nas estatais, tirando todos aqueles que estão sob suspeita; chamar de volta figuras decentes do PT que foram se afastando desde que ele ganhou a eleição, como o Eduardo Suplicy, Fernando Gabeira e Frei Betto; sair do PT, engolir o orgulho e tentar um acordo com o PSDB.

Isso é tudo que eu tinha a dizer sobre o assunto.

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Ah, lembrei de mais uma coisa. É do Ignácio de Loyola Brandão, esta semana no “Estadão”:

"Somos de uma geração cujos sonhos foram destroçados um a um. Somos pais de uma geração que está sem sonhos e sem caminhos? (...) Imaginávamos que Lula, operário, estava ali pra trazer esperança... Então, elegemos Lula. E a luz apagou. O que dizer agora aos jovens? (...) O que existe para nos manter sonhadores?"

Respondo ao Loyola com versos de Fernando Brant para a música de Milton Nascimento:

“Eu invento coisas
E não deixo de sonhar
Sonhar já é alguma coisa
É mais que não sonhar”